Uma tradução . Obrigada a Carol de Assis.
É estranho que tenha sido necessária uma ida ao teatro para eu realmente notá-la. Afinal, ela está por aqui, minha amiguinha de tinta, há cinco anos. Lá estava eu sentada no fundo de um teatro, logo abaixo da cabine, a quase 10 mil quilômetros da minha casa e um pouco nervosa porque eu havia concordado com isso, mas suspeitava que talvez não gostasse. Não, de verdade, estou falando sério. Não é sobre ego; Una é meu bebê e, embora eu a tenha compartilhado com o mundo, ela é preciosa para mim. Além disso, escrever e desenhar um quadrinho é uma jornada solitária, enquanto fazer teatro é um exercício de confiança mútua e colaboração, então eu não fazia ideia se isso iria funcionar, e de uma maneira que mantivesse intacta a integridade da obra original. Como você saberá se leu “Desconstruindo Una”, sou contra a espetacularização em narrativas sobre violência, mas como evitar o espetáculo em uma peça de teatro? Eu não fazia ideia. Eu só sabia que as fotos que eu tinha visto de mulheres jovens em vestidos vermelhos encenando a peça em sua fase inicial eram tão bonitas que me levaram às lágrimas.
Começou com uma mensagem no site de uma jovem chamada Mileny, em nome de um grupo de teatro juvenil de Mauá, São Paulo. Eu fiquei intrigada. Sou cautelosa ao permitir que as pessoas usem minhas imagens e palavras, mas esse projeto sem fins lucrativos em um país onde a violência contra mulheres e meninas pode ser descrita com precisão como uma epidemia e onde há pouco apoio a elas é realmente excepcional. Além disso, as ativistas feministas brasileiras precisam de toda a ajuda que conseguirem, então se meu trabalho puder contribuir com seus esforços, sinto que isso é um privilégio enorme. Há apenas 74 abrigos para vítimas de violência doméstica em um país de mais de 200 milhões de habitantes. O estupro no Brasil é uma crise que parece insolúvel, embora um debate público tenha ganhado fôlego desde que um grupo de homens foi filmado estuprando uma adolescente em uma favela do Rio de Janeiro em 2016 e houve protestos públicos. No entanto, o apoio concreto e a justiça às vítimas são escassos; apenas em julho de 2018 uma lei foi promulgada no Rio de Janeiro para facilitar um melhor tratamento das vítimas de estupro e, em 2017, a política do Estado de São Paulo foi alterada para que todas as delegacias de polícia ajudem as vítimas de estupro, e não apenas as delegacias designadas (a cidade de São Paulo anteriormente tinha apenas nove delegacias designadas). A situação é agravada ainda mais pela pobreza e pelo racismo e por uma situação política que é profundamente preocupante.
Então Mileny e eu começamos uma correspondência lenta e paciente, na qual ela atuava como mediadora em inglês entre o coletivo, o diretor de teatro Felipe de Galisteo e eu. Eu chamei para essa conversa as poucas pessoas que conhecia no Brasil e que esperava que nos ajudassem a tirar o projeto do papel – minha editora brasileira, a Nemo, parte do Grupo Autêntica, e a jornalista Carolina de Assis, e comecei a pensar seriamente se eu realmente embarcaria em um longo voo sozinha para conhecer e trabalhar com um grupo de pessoas que eu não conhecia. Lentamente, resolvemos os detalhes juntos, o grupo decidiu por um nome, Coletivo Rubra, criou contas em redes sociais e começou um financiamento coletivo para a minha viagem. Comecei a tentar aprender o português do Brasil. Tive uma pequena ajuda de uma amiga paulista no Facebook, mas aprendi principalmente com o Netflix. 🙂 Felizmente, eu havia incluído no meu projeto atual do Arts Council England (Conselho de Artes da Inglaterra) um orçamento para uma viagem ao exterior, então pude pagar minhas passagens de avião. Graças ao Arts Council England, à Nemo e a nossos muitos apoiadores em São Paulo, eu cheguei sã e salva no dia 23 de outubro de 2019 e encontrei os rostos sorridentes de Allie, Larissa e Felipe esperando para me receber e me levar até Mauá.
Mauá é um município do Estado de São Paulo localizado nos arredores da mega metrópole da cidade de São Paulo. É difícil compreender a escala da cidade, especialmente para pessoas britânicas como eu, acostumadas à nossa pequena ilha. Minha cidade natal (Leeds, população de 789.000 habitantes) é a segunda maior cidade da Inglaterra (exceto Londres, depois de Birmingham. Manchester tem 534.000). A cidade natal da minha família, uma grande cidade comercial unida a Leeds, tem uma população de 22.000 habitantes. Mauá é uma das várias “pequenas” cidades unidas perfeitamente à cidade de São Paulo e tem uma população de 468.000. A cidade de São Paulo possui uma população de 12.176.000 habitantes e uma população metropolitana de 21.571.000. As únicas outras cidades que conheço intimamente são Londres (8,9 milhões) e Barcelona (1.620.000), então a primeira vez que olhei ‘Sampa’ do telhado da galeria de arte municipal foi um choque.
Mauá tem sua própria personalidade específica e eu queria conhecê-la para ter uma ideia do grupo de teatro e de seu público, então um dia perguntei às minhas guias turísticas Mileny e Ana se poderíamos passar o dia fazendo coisas típicas em Mauá. “Nós não faríamos coisas em Mauá”, disseram elas. “Não há nada para nós aqui. Iríamos para São Paulo.” Ok, mas se você não pudesse ir para São Paulo, o que faria em Mauá? Bem… tivemos o melhor dia de passeio e minhas guias me disseram que eu as ajudei a ver Mauá com novos olhos. Fomos ao shopping, fomos ao ‘self-service’, admiramos o crochê nas bancas da feira, conhecemos a avó de Mileny, surpreendemos Kamila no trabalho e vimos a famosa pregadora gritando do lado de fora do dentista, na rua da confeitaria e da barraca de caldo de cana onde fui picada por uma abelha louca por açúcar no dia seguinte. Surpreendentemente, eu nunca tinha sido picada por uma abelha antes, então não tinha ideia de como reagiria. (Eu fico com calombos enormes com meras picadas de mosquito, então temi o pior.) Meu gentil anfitrião Felipe me olhou ansiosamente do lado de fora de uma farmácia, enquanto esperávamos para ver se eu iria desmaiar. Isso não aconteceu, felizmente.
Ah, mas e a peça? Não decepcionou. Acho que talvez as fotos (tiradas por Felipe Castelani) falem por si mesmas, mas quero dizer o quanto significou para mim que o Coletivo Rubra tenha cuidado tanto do meu trabalho e umas das outras. Em qualquer grupo de jovens, haverá aquelas que foram afetadas pelos vários crimes e violências exploradas no livro e o Coletivo Rubra não é exceção. Sua abordagem sensível ao material foi exemplar. Sua atenção aos detalhes foi extraordinária. No teatro, elas até projetaram uma tradução em inglês para mim. Sinto que elas podem ter melhorado certos aspectos das metáforas visuais de “Desconstruindo Una” no processo de transformação em performance. Nos dias seguintes à exibição, tive conversas profundas e interessantes com Felipe de Galisteo e membros do grupo sobre como podemos continuar melhorando o trabalho, e foi um enorme privilégio testemunhar a apresentação delas, que me deixou impressionada com a minha própria obra. É bem boa, não é? Que maravilha revisitá-la dessa maneira.
Continuaremos a trabalhar juntos. Cheguei em casa com minha bolsa cheia de zines feitas pelo coletivo que revisitam sua peça teatral em desenhos – um interessante ciclo de transformação. Vou produzir um PDF deste material para impressão pelo Coletivo Rubra no Brasil e por Una no Reino Unido. Sei que minha visita chamou a atenção para o projeto delas; autoridades da cidade compareceram à apresentação e o coletivo foi convidado a se apresentar em outros teatros e festivais. Já fizemos várias alterações e melhorias juntos, mantendo contato por meio das redes sociais e do WhatsApp. Tenho certeza de que fiz amigos para a vida toda e essas jovens adoráveis e seu diretor gentil e barbudo me deram uma nova perspectiva sobre Una e tudo o que ela fez por mim e pelo mundo. É uma coisa linda. Não seria ótimo se pudéssemos conseguir financiamento para elas virem para o Reino Unido?
Desça na página para ver mais fotos de: a peça “Una: Dedicado a todas as outras”; minha visita à escola para fazer zines com adolescentes; nosso debate público sobre violência sexual organizado pela Sempreviva na Casa do Hip Hop, em Mauá; nossa viagem ao fantástico museu de arte MASP e Pinacoteca, em São Paulo; e minha visita à Casa Helenira Preta, um novo abrigo para mulheres em Mauá, que continuarei apoiando do Reino Unido. Fique atenta para meu financiamento coletivo no verão. Agradeço ao Coletivo Rubra, Felipe de Galisteo, Carolina de Assis e Ramon Vitral, Sempreviva, Nemo, loja de quadrinhos Ugra, Teatro Municipal de Rio Grande da Serra, o pai de Bruno e o cachorro de Bruno por nos aturar quando tomamos conta do apartamento deles, a avó de Mileny por estar lá e pelos lindos panos de prato bordados e pelos pais de Mika por receberem a festa de despedida, que foi muito barulhenta, desculpa. Finalmente, uma menção especial ao pai de Mika, que cozinhou dois Pacu enormes com perfeição. Delicioso! Vejo vocês todos em breve, tenho certeza.
